Vemo-nos por aí...

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Talvez

Talvez já estejas por aí, na luz difusa do dia. Talvez já estejamos próximos e eu não te consiga ver. Talvez seja apenas ilusão e a neve branca nunca se transforme em mar onde reflectirá o sentimento...

Apenas lembrança

Largos anos se passaram já desde aquela manhã de final de Fevereiro. Recordo-a como se fosse hoje. Talvez seja a mais recorrente lembrança que me persegue. Naquela manhã de nevoeiro, sentado solitariamente em frente ao mar, abri a capa amarela daquele livro do Vergílio. Li algumas páginas e senti-me estranhamente próximo. Ah! Como me lembro…
Senti a liberdade que em raros momentos nos é permitida e pude, como em poucos momentos da minha sobrevivência, olhar o mundo com olhos de Merlin. Sim, com esses olhos fundos, complacentes e sábios de quem não está comprometido com nada. Como se naquele momento abarcasse toda a sabedoria do mundo. Como se tivesse apreendido finalmente a essência da vida. Entre o nevoeiro e o céu cinzento, ouvindo o mar tão próximo, cheirando a maresia, lendo absorto aquelas primeiras páginas chorosas de “A Aparição”, senti-me sem espaço e sem tempo. Senti-me eterno, perene. Senti-me apenas espírito. Pouco gente passava na rua, pelo frio da manhã. Desconfio que mesmo quem passou não tenha sequer reparado no banco verde, de onde olhava o mar, esquecido. Ah! Como me lembro…
Li com tanto cuidado aquelas primeiras linhas. Já não me recordo de uma única palavra, mas nunca esquecerei o que senti. Falavam para mim sobre o momento que na altura me pareceu tão dicífil, tão solitário. Confesso agora que me senti confortável no abandono a que me tinha devotado, naquele retiro forçado a que me tinha dedicado e que permaneceu alguns meses mais. Lembro-me perfeitamente de ter eternizado aquele instante na dedicatória no livro. Foi a minha primeira dissertação literária. Uma tentativa falhada que me condenou, in posterum, para o mundo dos quase-escritores. Pouco importa.
Nunca mais regressei àquele topo de mundo. Pouco me lembro de “A Aparição” e considerei mesmo que o livro me tinha sido mais ou menos indiferente. Hoje penso o mesmo. Apesar disso, a lembrança daquela estranha emoção ficou. E encontro sempre nesse livro de capas amarelas, que nunca mais voltei a ler, nem voltarei, a serena tranquilidade daqueles que, ainda que por breves instantes, viram para lá de si.
Como queria mais do que a lembrança daquele momento! Mas como apenas isso me é permitido, comecei a ler um outro Vergílio em “Manhã Submersa”. A mesma cadência, a mesma escrita nostálgica de prosa quase poética. Agradável lembrança, mas apenas isso. E hoje, coincidência, final de Fevereiro, manhã cinzenta como há anos…

[Bem sei que não consegui passar-vos a beleza do momento. Bem gostaria. Perdoem-me…]

Sem sinal de ti

Nos dias compridos que enfrento, na jornada longa que percorro sozinho, no deserto de mim que atravesso, vou procurando por ti. Talvez até te tenha encontrado já e, por te ver a olhar fixamente para outro lado, tenha permanecido na sombra. Reconheço agora, com a clarividência da razão que finalmente parece ter dominado o coração, que estava a embarcar num viagem perdida. Reconheço ainda que o recolhimento a que me tenho forçado, com um ou outro deslize, se justifica cada vez mais…
O cansaço não me permite mais do que me arrastar para casa. Mesmo senhor da razão, esperava ainda um sinal de ti que, sei pela hora, já não vem. Foi tempo já. Curto, mas foi. Sinto as tuas outras esperanças e seria incapaz de as incomodar…

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Forma Plural

Devagar, devagarinho
Percorria as linhas que aqui risquei,
e vi paisagens distantes, ouvi musicas gritantes,
senti frio e calor, chorei e ri meu desamor.
Procurei o meu retrato, poucas vezes o achei.
Por cada esquina dobrada te vi sempre escapar,
e mesmo correndo depressa não te consegui alcançar.
Não pude deixar de perceber lágrimas caídas ao chão,
alguma ausência sentida, dias de pura ilusão.

Mas há sempre novo início, numa nova derivação,
Uma possibilidade remota de ouvir outra canção!
Por isso partilho hoje, o que de todos é afinal
A poesia fantástica de um poeta genial.

E porque sempre considerei que a matemática estava errada
Nunca por força aceitei que unidade por si multiplicada
Sempre fosse igual a um, permanecendo singular
Qual estrada inacabada pela ausência de amar.

Espero um dia pronunciar a forma plural
Essa beleza raríssima de aurora bureal…


ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU (Por Drummond de Andrade)

Além da terra, além do céu
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastros dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
Vamos conjugar
o verbo fundamental essencial
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar
o verbo pluriamar,
razão de ser e viver.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Torre de Narciso

Puras contradições. Se de manhã riu, de tarde medito e de noite perco-me em 'Para-lá-do-mundo'. Nesse espaço onde pouco se pode encontrar, onde pouco se pode esperar. Nada parece acontecer, nem uma pequena brisa anuncia a mudança sempre desejada. Tenho muitas vezes uma terrível vontade de desistir, de largar tudo, de me fechar na torre de Narciso do Ary. Mas resisto. Acredito que o mundo ainda gira…

Ao sol, ao vento, à música, levanto
Esta voz que não tenho. A Deus imponho
A obrigação de me escutar o canto
E entender o que digo e o que sonho.

A mim me desafio. Aos outros ponho
A condição de me odiarem tanto
Que não descubram nunca o que suponho
O meu secreto e decisivo encanto.

Contra o que sou me guardo e quando oiço
Falar do que pareço, posso então
Encher o peito de desprezo e riso.

Pois só eu me conheço e só eu posso
Subir até àquela solidão
Onde me incenso, amo e realizo
(Ary dos Santos, Da Minha Torre de Narciso)

Ainda leve...

Ainda leve ou talvez mais. Longas horas de trabalho, olhos cansados. Ainda assim tão leve ou mais do que de manhã cedo. Regresso agora, tranquilo, ao meu pequeno mundo e escuto...

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Sinto-me levitar

Início de semana. Percorro lentamente com os dedos as páginas da agenda. Faço mentalmente planos e defino pequenos objectivos. Olho pela janela. O dia nasceu soalheiro. A rua desperta aos poucos e começo a ouvir a azáfama do costume. Entre uma chávena de leite quente tomada em pé e uma passagem rápida pelas notícias do dia, sinto uma estranha leveza, como se os pés não tocassem no chão. Tenho vontade de me irritar comigo, porque bem seio que se passa. Procuro esquecer e guardar apenas o conforto dessa sensação. Quando regressar a casa, saberei se valeu a pena ou se, como em tantos outros dias, também este foi quase em vão. Por agora levito e sorrio…

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Procurando desaguar

Pareceu-me que também eu deveria recordar aqui o grande Zeca. Essa estrela d'alva que comemorou ontem mais um ano de presença no firmamento. Muito se poderia dizer, mas nada que seja mais expressivo do que a sua música e a sua interpretação! Naturalmente que me assusta perder a intimidade deste pequeno mundo de onde te escrevo. Muitas vezes, leitor amigo, é no lugar-comum que encontramos esse pequeno espaço de cumplicidade e partilha. Corram as águas das fontes e das ribeiras para o mar, para esse mar onde espero desaguar e, enfim, confundir-me contigo...

Chutando pedrinhas

Na indolência das calmas horas nocturnas, paro um pouco e escuto. Ouço o mundo respirar, sinto a natureza transpirar. Todos dormem. Toda a aldeia se acomodou e, no silêncio da rua, a única digna desse nome, já não se ouve sequer o ruído de fundo dos televisores. Tudo se recolheu e, lentamente, a natureza vive. A lua difusa deixa escapar apenas alguns raios tímidos. Naquele silêncio acolhedor, caminho devagar para não despertar ninguém com o bater do coração. Olho enternecido para aqueles campos negros onde reflectem os tímidos raios de luar. Sento-me numa pedra, aconchego o casaco e encolho-me sobre mim.
Sinto o mundo girar. Por momentos, transponho as minhas fronteiras e vejo-me ao longe. Ali sentado, testemunha única da noite, pareço alheado. Aquele pequeno sorriso fácil que muitas vezes desbarato, cobre-me outra vez o rosto. Lá do alto, a observar-me, deixo escapar um suspiro cúmplice. Bato-me no ombro e faço de mim para mim um discreto aceno de cabeça. Levanto-me e caminho agora comigo por essa rua. Há algum tempo que não o fazia.
Cruzamos algumas palavras, trocamos algumas confidências. A passo lento vamos chutando alternadamente uma pedrinha, indiferentes ao nada que se passa. A conversa corre fluida. Evitamos prudentemente nomes proibidos, porque esta noite, na rua única da aldeia, a vida é simples e o mundo uma estradinha de paralelos onde de quando em quando nasce uma ervinha.
Sentados com os braços sobre os ombros, como fazíamos quando éramos miúdos e vínhamos da escola, ficamos a ver as mesmas estrelas e deixamos a música tocar…

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Lagartando em silêncio

Sempre tentamos descrever paisagens fantásticas, mostrar como vêmos e sentimos a beleza estonteante da natureza. Para quê? Se os olhos não falam, por algum motivo deve ser. Hoje, nada mais me apetece do que lagartar ao sol e, em silêncio, contemplar a paisagem...


Lagartemos
....

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Poema do Silêncio

Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.

Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.

Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.

(José Régio)

Desculpa

Desculpa se começa a germinar em mim, ainda que muito levemente, a pequena semente. A ti que me persegues nos pensamentos que quero evitar, que não quero ter, que não quero sentir. Desculpa se te constranjo com as palavras soltas, mas sentidas, que vou lançando por aqui e por aí. Desculpa se ultrapassei os limites da afabilidade, a partir da qual tudo é ousadia. Ultrapassei-me a mim, sei-o bem. Fui menos reservado do que costumo ser, mas menos temerário do que gostaria. Tentei criar um equilíbrio entre o desejo de velocidade do sentimento e a prudentíssima calma da racionalidade. Percebo agora, mais pela tua ausência do que pela minha lucidez, que não fui capaz. Que vi em cada sinal o que não deveria mas quis ver. Que li em cada palavra o que não escreveste. Que pensei para lá de cada partilha o que nunca lá esteve.
Continuo ainda assim a sorrir para ti. Em nada erraste ou te ultrapassaste. Porventura até me tenhas mostrado mais do que fui capaz de ver. Sinto-me agora um pouco mais pesado. Sempre me soube e me quis iludir com o que sabiam ser apenas ilusões. Inocência minha, desculpa.
Como percebo agora que a lua não é inocente, que o sol não é inocente, que a noite não é inocente. O que vi foi apenas um reflexo do meu olhar. Esperando que passe, tentarei secar a semente e guardá-la-ei para outra sementeira. Se não a houver, permanecerá apenas mais um objecto do meu baú das recordações.
Talvez mereçamos os dois algum recolhimento, embora a minha vontade seja ir atrás de ti. Permanecerei por aqui, à tua espera, em silêncio a partir de agora…

Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?
(Saramago, 1999)
[Como apesar de tudo ainda sonho...]

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Nessun dorma

A música canta o que sinto e o quanto o coração me começa a ficar pequenino. Como quero fugir do que aos poucos sinto e como não quero entrar sozinho numa estrada sem fim. Como anseio novamente pelos dias de tranquilidade banal onde não esperava um sinal de ti...
Ninguém dorme
Ninguém dorme

Tu pura princesa
Na tua fria casa
Vê estrelas
Que tremem de amor
E de esperança

Mais o meu mistério está preso em mim
E o meu nome ninguém saberá
Não, não
Nem na tua boca eu direi
Quando a luz resplenderá

E o meu beijo vai quebrar o silêncio
Que te fará minha

Quando acabar a noite
As estrelas se vão
E a manhã chegará

Quando acabar a noite
As estrelas se vão
As estrelas se vão
E a manhã chegará
Chegará
Chegará
Chegará

Há palavras que nos beijam

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

(Alexandre O'Neill)

Montanha de ilusão

Miras a paisagem. Vês ao longe a montanha. O entusiasmo do primeiro momento foi-se na primeira tentativa frustrada de escalar. Olhas para aquele cume distante e inacessível e sentes-te pequenino. Ficas ali sentado, no sopé, a chorar. Nada mais te parece possível. De um lado a grande montanha que te escapa e do outro a planície onde não és nada. Tudo parece acabado. Vista de longe a montanha sobressai naquela paisagem deserta. Fixaste-a e sorriste para ela. Com a inocência que quem pensa ser ali o paraíso, correste para lá. E agora, triste, choras sozinho a ilusão que ainda há pouco te fazia sorrir. Nada mais te parece possível. Pareces condenado à monótona planície que se estende de um dos lados. Um dia levantarás o rosto, enxugarás as lágrimas, e erguer-te-ás vacilante. Contornarás o sopé da montanha que te irá parecer nessa altura muito mais pequeno. No outro lado, uma nova montanha. No início da escalada, à tua espera, eternamente à tua espera, estarei eu. Compreenderás então, no olhar cúmplice que trocaremos, que o paraíso não é a montanha. De mãos dadas, naquela nova escalada, construiremos esse paraíso. Haverá altos e baixos, como em todas em montanhas, mas mesmo na noite escura o sol não morrerá, porque em ti o verão é eterno…


Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.

Ás vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na terna mutação da natureza.

Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste Inverno:

Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.

(William Shakespeare)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Guardo-te

Aguardo-te em mim. Guardo-te nos poemas que te escrevi e não partilhei. Guardo-te nas paisagens que não te mostrei e que revejo vezes sem conta. Guardo-te nos sonhos que tenho contigo e nos olhares que perco por aí. Guardo-te nas surpresas que te quero fazer. Guardo-te nos postais que ainda não escrevi, nas mensagens a horas impróprias que ainda não te enviei. Guardo-te nos pedacinhos de papel que te quero deixar, nos recados discretos, nas músicas que ouviremos juntos. Guardo-te em tanto que tenho para te dar, no mundo imenso que já conquistei para ti. Tenho um céu estrelado, milhares de universos, sois de todas as cores. Tenho múltiplos olhares para te deixar de manhã na cabeceira, mil cantos sombrios para me perder contigo. Tenho oceanos para sentirmos os dois, praias onde te quero deitar. Tenho cidades para viajarmos, caminhos para percorrermos, gentes para conhecermos. Tenho-me a mim para ti. Só não te tenho a ti…

Espaço vazio

Há dias em que tudo parece parado. Nada parece sair da ponta da caneta, habituada já aos riscos abruptos de quem se arrepende do que escreveu. Procuro mais uma vez a inspiração nas fontes do costume. Impossível. Não há estrelas, não à Lua, o Sol anda escondido e nem a chuva é a sério. Apenas este cinzento da cor da minha alma que me torna quase invisível.
Sinto apenas o coração bater e, de mansinho, procuro a inspiração em ti. Em ti que te afastas a cada dia mesmo que nunca tenhas estado próximo. Impossível também. Foges esguio quando te lanço um olhar vivo. Ignoras quando te falo, limitando-te aos convencionalismos da simpatia e da educação. Como sabe a pouco…
Vejo-me novamente sozinho, eu que não deixei nunca de o estar. Hesitante entre a dúvida e a certeza de um não, preferi continuar a sonhar contigo. Como sempre, tive vontade de te dizer que estava ali, a pensar em ti. Pensei até no que escrever e sabia-te ainda acordado. Contive-me. Debati-me entre um sentimento que aos poucos vai despontando e a parte mais racional que sempre me domina. Há quem lhe chame outra coisa! A razão condenou a emoção a alguns suspiros e algumas lágrimas contidas que teimosamente segurei. Olhei pela janela. Começava a chover. A música do meu pequeno mundo tocava baixinho, sem fazer muitas perguntas.
Nada soube de ti também. Acordado, imaginei-te também a olhar pela janela. Ouvi alguns suspiros e percebi esse olhar perdido. Nada te perguntei, nada me disseste. E nesse espaço vazio que entre nós se vai cavando, contra o qual luto discretamente, percebi por quem vigiavas. Reduzi-me à minha insignificância e pus a música mais alto para não me ouvir.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Deixai-me!

Foi-se Ricardo Reis.
Foi-se o carpe diem.
Foram-se os epicuristas.
E levaram-me a tranquilidade,
a doce tranquilidade dormente em que jazia...

Agora choro por ti que mal conheço
para que não sinta tanto a tua ausência.
Contemplo as bucólicas paisagens de Caeiro
vejo-te em toda a natureza
em todas as noites, em todas as luas, em tantos sois.
E assim me sinto quase-humano, quase-amado…

Vivo novamente as tempestades futuristas do Álvaro!
Sinto a velocidade do tempo,
Triunfalmente estonteante como a Ode
onde nunca serei herói ou amor...
Ah! Como continuo condenado
à estúpida racionalidade do ortónimo.

Deixai-me morrer sozinho, filhos do mesmo pai!
Deixai-me sonhar sozinho no cárcere involuntário
em que te espero a ti que não virás…

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Estarás?

Sei-te por aí, derivando entre os teus próprios amores e as esperanças não admitidas que te escuto. Acompanho, com alguma distância, os teus passos nessa estrada da emoção. Sinto a humidade dos teus olhos e, num conhecido canto escuro, vejo-te muitas vezes chorar. Outros dias, feliz, caminhas sobre as águas, levitando com o mundo e com os sonhos que te consomem. Num sorriso do tamanho do mundo, cultivas a alegria à tua volta e conspiras para que as quimeras dos outros se corporalizem em realidades verdadeiras.
Genuinamente te encantas com esse universo idealizado onde te ultrapassas todos os dias. Onde plantas, singela e pequenina, a flor dos teus desenganos, e esperas pela chuva de flores brancas que eternizará esse sonho para lá do mundo.
Mesmo olhando-te por aí, mesmo sabendo quando choras e quando sorris, mesmo sabendo-te e sabendo de ti, pergunto-me se estarás quando chegar a casa…

Poema de ti


Nas frias horas da tua ausência, nessas horas de não saber de ti, em que percorres os meus pensamentos e te expandes por paisagens de múltiplas cores, escrevi-te um poema.
Naquele pedacinho de papel, as letras miudinhas voam contigo, dançando ao som das músicas que ouves. Naqueles letras miudinhas vejo o teu rosto, sinto-me contigo, sinto-te perto. Retrato que fiz de ti! Tela encantada onde te posso agora ver todos os dias, onde te posso ler, onde te posso ouvir.
Ali me esperas, ao pôr do sol, para que juntos vejamos a mesma paisagem sumir-se num horizonte só nosso. Nunca mais contemplarei sozinho o luar brilhante nem estarei desacompanhado no meu cárcere voluntário. Não preciso de sonhar-te mais. Estás ali, nas letras de ti que desenhei para mim. Outros sonhos circulam agora entre nós, esperando o dia em que, baixinho, te vou ler esse poema. Nesse instante eterno, as letras miudinhas desenharão magicamente um mundo só nosso e deixarei de ver ali o teu rosto, porque me bastará olhar para o lado. E tu não terás dúvidas de que a felicidade é eterna…

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Impressão digital

No refúgio onde ontem me escondi, encontrei os sublinhados que em tempos idos deixei nas páginas de um livro de Miguel de Unamuno. Nessa altura, bem me recordo, com o lápis de cor verde marquei aquele pensamento profundo e dei-lhe apenas a importância de quem reconhece num bom texto as reflexões poderosas que a razão permite entender.
Nesta noite de insónia, regressado já do Jardim dos Prodígios, peguei sem qualquer pretensão nesse pedaço de vida já antigo e percorri alguns capítulos. Detive-me naquela impressão digital de cor verde que um dia deixei. Rapidamente me esqueci de mim, rapidamente me esqueci do mundo e entrei no buraco negro do alheamento total. A razão de outro tempo deu lugar à emoção e aquelas palavras tornaram-se minhas, renasceram. Até a pergunta final se personalizou agora, desenhando rostos no ar frio da minha noite. Envolvido, ali fiquei, relendo vezes sem conta a impressão digital que partilho agora contigo. Sendo minha, poderá também ser tua.

Aventura-te por dentro de ti mesmo, remexe e aprofunda. Há amores que não conseguem transbordar do copo que os contém e que se derramam para dentro, e há-os inconfundíveis, os que o destino formidável oprime e aprisiona no ninho de que brotam; é o seu próprio excesso que os tolhe e encerra; a sua tremenda fatalidade sublima-os e engrandece-os. E, aprisionados, envergonhando-se e ocultando-se dentro de si próprios, tudo fazendo para se aniquilar, lutando por morrer, pois não podem florescer à luz do dia e à vista de todos, e muito menos frutificar, tornam-se paixão de glória e de imortalidade e de heroísmo. […]
Grande é a paixão que rompe com tudo e transgride leis e arrasta atrás de si as normas e desencadeia torrencialmente o seu caudal transbordante; maior se torna ainda quando, com receio de se misturar com as terras que há-de arrastar na sua furiosa arremetida, em si se concentra e condensa, como se quisesse engolir-se a si própria, lutando para se desembaraçar na própria impossibilidade, e acaba por rebentar para dentro convertendo num imenso pélago o coração. Não foi isto que te aconteceu?

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Hoje estamos encerrados!

Deixo o livro entreaberto. Poucas linhas acrescento à(s) nossa(s) história(s). Não que não haja o que dizer, o que pensar, o que falar. Não que não te continue a ver ao longe, a ouvir, a sentir. Mas hoje, hoje estamos encerrados!
Hoje perdi-me deliberadamente no Passeio dos Prodígios para me esconder de mim e do mundo. Ali, entre colinas, espreito o horizonte e, vendo-te lá longe, sorrio para ti, escondido nas ameias do meu refúgio. Imagino que um dia não te verei no horizonte porque estarás ao meu lado. Nesse instante eterno teremos pela frente o mesmo espaço que agora invento e que se alarga diante de mim. Mas hoje, hoje estamos encerrados!
Amanhã, regressado, continuarei a longa espera por ti…

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Esperarei

Pensarás que me esqueci de te escrever ontem, leitor atento. Ou talvez essa seja apenas a minha ilusão, achar que vieste, achar que reparaste.
Ouvi-te várias vezes, vi-te em milhares de sítios, senti-te noutros tantos. Falei contigo mas pouco me respondeste. Talvez deva falar mais baixo, talvez mais sussurrado. Permanecerei assim no conforto do espaço que mora entre a dúvida de não quereres falar nada ou de nem sequer teres ouvido.

No presente de ontem, que hoje nada mais é do que a memória banal que se some ao fim de alguns dias, soube da música que quero encontrar no futuro e que espero nos faça sentido aos dois. Olho ainda para esse tempo distante, que aguardo no silêncio que me é possível manter, e espero que andes por lá.

Sempre o mesmo trilho, sempre o mesmo fundo, sempre o tema eterno do amor. Eterno porque sempre presente e porque a sua inexistência é uma impossibilidade. Pode estar presente ou ausente. Pode ser gota de orvalho ou catarata Niaguara. Pode ser raio de sol ou fogueira a crepitar. Pode ser lua em quarto crescente, minguante, ou a mais brilhante lua cheia. Pode ser uma andorinha ou toda a primavera. Pode ser o mundo ou todo um universo. Podes ser tu, pode ser nós.

Esperarei por esse futuro e por esta música. Esperarei por mim e por ti. Esperarei por nós.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Será que te perco por aí?

Vagueio entre a sombra e a luz. Entre a lágrima escondia de ti e o sorriso de te sonhar. Cultivo ainda o desassossego que ontem me afligia e que me começa a abandonar, na ausência de saber de ti. Na ausência de tantas coisas possíveis, enumeradas por um amigo teu, recordaste ainda há bem pouco.

Espaço a espaço, deixo escapar um suspiro. Desvio por momentos o olhar dos afazeres diários e levanto-me para ir à janela. Acho sempre que te vou encontrar numa nuvem, num raio de sol, numa flor, no voo de uma ave, numa gota de orvalho, numa estrela cadente, num raio de luar. Quero crer que estás aí, por aí onde te perco antes mesmo de te encontrar.

Da janela de sotão que fica por cima da minha cama, esse outro cárcere voluntário onde às vezes me recolho, vejo-te lá em cima, numa daquelas estrelas todas. O luar reflecte-me no rosto e sinto-me iluminado. Assim também tu me verás, deitado naquele espaço pequenino onde, há vários anos, montei o meu mundo e me refugiei das boas gentes lá de baixo.

Começo a sonhar contigo! Ouço novamente gritos de insónia. Leves, é certo, mas acho que ainda não temos tempo para mais. Tenho um medo profundo de que se tornem audíveis porque, sei, nunca os ouvirás. Ficarei condenado a escutá-los sozinho nas longas noites da tua ausência.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Think

Think of me...


...and tell me what do you feel?

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Desassossego

As horas vão correndo à velocidade dos dias que foram banais. A volúpia do tempo não acalma o desassossego que me cresce a cada dia e que vai aumentando na razão inversa da minha vontade. Sinto-me ficar prisioneiro. Sinto-me entrar num cárcere involuntário onde o mais provável é permanecer sozinho. Sinto um caminho conhecido que, sempre diferente, me mostrará possivelmente o que não quero ver.
Tento enganar os sentidos e fazer-me crer que o desassossego não te envolve, que nada tem de teu. Que é apenas a nostalgia dos dias banais que começam a desaparecer. Desses dias em que, como diria o amigo poeta, não há mais nada de novo que não eu. Nesses dias em que as nuvens não se espantam nem há estrelas a mais, em que não enlouquece ninguém.
Sei que não. Reconheço no tímido bater do coração o que começa a nascer. Reconheço no olhar atento a procura de um sinal de ti. Reconheço nas reflexões pessoais o pedaço de ti que já me persegue e que sei não será meu. Sei-te por aí, onde te encontrei, e vejo-me constantemente à tua procura…
Com a paciência de quem sabe já o que há, volto a pegar no livro eterno da minha cabeceira, que reservo apenas para quando o coração aperta. Tento enganar-me mais uma vez, percorrendo-o com o aleatório descomprometimento de quem nada procura por já ter encontrado algo. Nesse folhear sem intenção, o olhar prendesse num retrato que hoje sei ser meu.
Como nada mais te posso dar, como pouco mais posso esperar, como te sei mais distante do que gostaria, como me sei mais próximo do que desejaria e porque, mais do que tudo, prefiro o sofrimento solitário à comiseração partilhada, deixo-te esse retrato de mim, quase-copiado no Livro do Desassossego ao amigo Bernardo.

Espaçado, um vaga-lume vai sucedendo-se a si mesmo. Em torno, obscuro, o campo é uma grande falta de ruído que cheira quase-bem. A paz de tudo dói e pesa. Um tédio informe afoga-me.
A janela do quarto onde dormirei deita para o campo aberto, para um campo indefinido, que é todos os campos, para a grande noite vagamente constelada onde uma aragem que se não ouve se sente. Sentado à janela, contemplo com os sentidos esta coisa nenhuma da vida universal, desde a invisibilidade visível de tudo até à madeira vagamente rugosa de ter estalado a tinta velha do parapeito branquejante, onde está estendidamente apoiada a minha mão esquerda.
Quantas vezes, contudo, não anseio visualmente por esta paz de onde fugiria agora contigo, se fosse fácil. Quantas vezes julgo crer […] que a paz, a prosa, o definitivo estariam antes aqui, entre os sentimentos sofridos, do que ali, longe, onde te espreito. E, agora, aqui, sinto-me desassossegado, cansado a bem, estou intranquilo, estou preso, estou…
Não sei se é a mim que acontece, se a todos a quem a civilização faz nascer isto pela segunda vez, pela terceira, pela quarta… Mas parece-me que para mim, ou para os que sentem como eu, o coração fica mais pequeno, mesmo acolhendo algo muito maior do que eu …


Como gostaria de me enganar! Como gostaria que o mesmo desassossego despertasse desta vez o sorriso que há muito escondi do mundo…

sábado, 9 de fevereiro de 2008

Felizmente, felizmente há quase luar!

Muito discreta voltaste a aparecer, minha lua de quarto-crescente. Esperei pacientemente estes dias que regressasses da tua ausência. Timidamente tocaste-me no ombro e, enfim, posso desabafar uma outra vez contigo.
Do alto da tua nova aurora, olhas-me verdadeiramente. Consentes algumas lágrimas, permites alguns suspiros. Serenamente me perguntas o que aconteceu, que magia é essa que começa a acontecer. Pergunta marota a tua! Bem sabes a resposta, mas, ainda assim, disfarças a inocência na candura do olhar.
Observo-te em silêncio e, medroso, te pergunto, como não o fazia há já muito tempo, o que há-de ser de nós?

Hoje tudo é eterno num segundo

Hoje falamos baixinho. Hoje talvez nem precisemos de falar. Hoje, os olhares falarão por nós, os sorrisos falarão por nós, os suspiros falarão por nós. Hoje, uma nova cumplicidade falará por nós.

Hoje, a distância dilui-se, mas nem por isso o caminho se encurta. Nem por isso ficamos mais nós, apesar de mais próximos. Nem por isso voamos, mesmo sentindo leveza. Nem por isso achamos o mundo mais pequeno, ainda que tudo pareça possível.

Hoje, contrario Zenão e o seu paradoxo, contrario todos os gregos e todas as filosofias. Sei que chegar a ti não é equação impossível, mesmo que tenhas partido mais adiante. Sei que esperarás por mim no caminho se por algum motivo não te alcançar.

Hoje não conheço amanhã! Porque hoje, hoje tudo é eterno num segundo…

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

Quero crer que tudo seja eterno num segundo

A indolência das horas banais é pontuada, aqui e ali, por alguns momentos de livre contentamento. Por esse sorriso rasgado de quem fica encostado atrás da porta, olhando perdidamente para amanhã. Por essa vontade imensa de ir à janela e gritar, de dizer bom dia a toda a gente na rua, de cumprimentar efusivamente todos os que passam e dizer, mesmo contra a mais elementar evidência, que está um dia lindíssimo, fantástico. Por essa estúpida sensação de que os passarinhos já regressaram e de que a Primavera se começa enfim a fazer. Pelo miar dos gatos que pacientemente tento conquistar, mas que no último momento sempre me escapam.
Nesses pequenos momentos do mais puro e genuíno sentimento, o mundo deixa de ser estranho, a lua deixa de me fazer chorar, a noite torna-se muito mais cúmplice e no calor do sol sinto o aconchego que sempre procuro. Em breves instantes, criaturas fantásticas, seres alados, percorrem os ares e se tornam comparsas daquele meu inculpável brilhozinho nos olhos.
Quero acreditar que a Primavera voltou. Quero acreditar que sei o caminho. Quero acreditar que vejo as certezas de que dantes duvidei. Quero acreditar que um nós é possível e que havendo um nós exigirá um eu e um tu completos e complementares.
Lá fundo, receio-o bem, talvez não seja este o caminho. Talvez a prudência que sempre me acompanhou não esteja de todo errada. Talvez a ligeireza que sinto nos últimos tempos, e que ainda me é nova e estranha, seja apenas o desejo forte de te encontrar.
Na lucidez da minha formalidade sempre encontrei a protecção dos mundos. Também nessa lucidez senti passar ao lado caminhos possíveis. Porque muitas vezes hesito e fraquejo no último momento, diz-me tu, amigo poeta Régio, se no fundo do teu cântico negro, vou ou não por aí…
(É das letras mais bonitas que se pode escrever a alguém. O género, esse, é apenas um pormenor.)

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Sonhando

Porque talvez me reste pouco mais que sonhar...

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Sozinho

Fim de dia cansado. Regresso a casa entre os últimos raios de sol e alguma descrença banal. Sigo pela beira do passeio num quase-passo seguro. Sinto no rosto uma ligeira brisa que me arrasta o sobretudo de golas grandes para trás e deixo-me guiar pelo instinto de quem já percorreu o mesmo trajecto dezenas de vezes. Como sempre, ao meu passo solitário chegam os pensamentos corridos que não consigo evitar. Há dias assim, em que por razão nenhuma nos sentimos pequenos, sós, esquecidos do mundo…
Mantenho o rosto simpático e vou cumprimentando aqui e ali os habitantes dos “mesmos espaços a horas certas” que, como as árvores da avenida, se habituaram já a ver-me passar.
Vou percorrendo assim a rua, desejando chegar ao meu templo sagrado e, enfim, refugiar-me uma vez mais no meu cárcere voluntário das tristes horas banais. Não se diluem os sentimentos, nem a nostalgia de um não sei quê que não cheguei a ter. Mas ali, naquele alto de mundo, o coração amansa e, se quiser, posso deixar correr uma lágrima marota que hoje, hoje não será por ti, não será por nós. Será por mim.
Por mim. Pelos sonhos que tão jovialmente acalento, pelas ilusões dourados em que acredito, pelas viagens astrais que ainda faço, pelos dias que ainda hei-de perder a olhar para ti que não vens.
Olho uma vez mais para as pedras da rua, deixo escapar um suspiro e, sozinho, regresso ao meu pequeno espaço...

Pelo Imperador da Literatura Portuguesa

Por inspiração de um blog amigo, admito, recordo hoje o aniversário do “Imperador da Literatura Portuguesa”, como muito propriamente o definiu Pessoa. Quatrocentos anos depois do seu nascimento, a obra perdura pela eternidade e, bem podemos dizer, talvez mais actual hoje do que ontem. Mas isso são anacronismos típicos de quem se prende ao seu tempo e o acha sempre mais actual, mais avançado, mais progressista, mas civilizado. Esqueçamos.
O cunho intimista com que sempre te falei, amigo leitor, parece hoje aqui quebrado. Talvez! O amor, tema sempre recorrente nos meus gritos de insónia, parece ficar hoje noutro plano, como se vários planos fossem possíveis. Sabemos os dois que não. Que a Terra é plana e que, por isso, o mínimo que pode ter acontecido é o amor ter ficado a um canto. Mas não! Recordar Vieira, esse velho amigo de viagens, humanista caro, é recordar o amor, é falar de amor, de entrega e de paixão.
Humildemente me silencío e te dou a voz a ti, orador dos tempos idos falando continuamente no presente sobre um futuro em que acreditas…

Ou é porque o sal não salga ou porque a terra se não deixa salgar. […] Suposto, pois, que, ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal, e que se há-de fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga? […] E à terra, que se não deixa salgar, que se lhe há-de fazer?

Que se há-de fazer? Diz-me tu. Que se há-de fazer se o amor não te contagia? Se fica meu e só meu e nem pela força de tanto te olhar, de tanto te pensar, de tanto te saber, te abraça e te consome. Serei eu, pequenino, que me fico para lá do tempo a sonhar contigo e te imagino, e me imagino, e nos imagino, próximos um dia, que não desperto em ti todo o amor que me corrói? Serás tu que não te deixas abraçar e mesmo perto te escondes atrás de ti?
Que se há-de fazer? Que se há-de dizer? Que continuarei eternamente caminhando, para chegar a ti…

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Snobismo

Na indolência das longas horas de solidária solidão, lanço de mim para mim alguns sorrisos cúmplices. Desses sorrisos que só a tranquilidade do espírito e uma certa dose de estupidez natural permite. De quando em quando um pequeno sorriso audível se poderia perceber, não fosse a ausência partilhada de outras gentes e outros mundos.
William James, esse velho amigo de conselhos profundos, deita-me um olhar sabido, quase para lá dos tempos. Nos olhares e acenos que por momentos trocamos, vai fluindo aquele texto fantástico onde um dia aprendi as perspectivas possíveis de olhares diversos. Hoje, mais do que nunca, fazem todo o sentido aquelas palavras. “Quando duas pessoas se encontram há, na verdade, seis pessoas presentes: cada pessoa como se vê a si mesma, cada pessoa como a outra a vê e cada pessoa como realmente é”.
Humildemente me retrato, velho amigo, pelo topete intelectual de acrescentar algumas vírgulas ao teu trabalho. Poderias sempre ter acrescentado mais duas pessoas: cada pessoa como acha que a outra a vê. Terias agora oito e não seis e, neste impulso quase doentio, derivar eternamente. Dez, doze, catorze…
Bem sei o que diz esse teu olhar cansado. Que me prendo constantemente a esse velho argumento do cognitivismo. Que a Teoria do Homúnculo é retórica oitocentista. Mas como são belas estas derivações. Como podemos facilmente passar de seis para oito e para dez e para doze, da mesma forma que os outros viam homens dentro da cabeça de homens em derivações infinitas.
Sorrio. Balbucio lentamente essa palavra. Snobismo. Arrisco-me até a consultar um dicionário de etimologia das palavras. Sorrio novamente.
Não posso deixar de não reflectir nessa perspectiva e, enfim, confirmar de certo modo a velha crença que me persegue – o mundo não pensa para lá do aparente. Aqui, facilmente me enredo na argumentação, porque isto pode parecer em si superioridade. Sei que não o é, mas assim fico ainda mais preso. Seja!
Na distância que mantenho, na deferência que presto, nos olhares tranquilos que lanço ao mundo e aos outros, na cordialidade dos modos, na formalidade do trato e da postura, no respeito pelas convenções e protocolos, na intransigência da argumentação, no inconformismo pelas opiniões erradas, encontrei uma certa forma de ser e de estar. É obviamente uma parte de mim. Agora, snobismo? Snobismo?
Embora a acusação não seja nova nem estranha, não posso deixar de sorrir uma outra vez e concluir que de facto, o mundo vê pouco, muito pouco, para lá do que é aparente. Ao contrário do que se pensa, é preciso muito pouco para perceber muito. Mas talvez esteja a pedir de mais. Seja como for, tem a sua graça…

Ainda olhando por ti

Do canto do teu quarto vi-te sair. Como me pareceste melhor, deixei-te ir e fiquei por alí a ouvir a música que me mandaste e, como sempre, a meditar sobre alguns momentos da conversa. Quando voltares, terei já desligado a música e apagado as luzes. Regressarás cansado e até podes trazer um sorriso nos lábios, mas saberei que no fundo ainda estás dorido, mesmo que o escondas do mundo.
Por isso, quando adormeceres, regressarei novamente à tua cabeceira e, como ontem, puxar-te-ei os cobertores. Talvez hoje tenha corajem para algo mais do que te tocar no rosto...

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Continuarei aí, contigo...

Velei-te a noite toda. Senti o teu sono agitado que só a altas horas se acalmou. Puxei várias vezes os cobertores revoltos e, confesso, não resisti a tocar-te no rosto. Quando acordares, terei já regressado ao canto escuro do teu quarto e ali permanecerei até ao crepúsculo. Sigo-te de longe e asseguro-me que, mesmo vacilando, não arrepias caminho.
Vejo-te agora acordado, sentado na cama, e sinto que, embora mais calmo, continuas com o coração tão apertado como ontem. Novamente sinto o impulso para correr para ti e te abraçar, te passar as mãos pelos cabelos e, num ligeiro aceno de cabeça, te tranquilizar. Como ontem, deixo-me estar, esperando que percorras esse caminho teu e só teu.
Mesmo por perto, receio sempre que te sintas sozinho e, por isso, antes de regressar ao canto sombrio do teu quarto, coloquei este pedaço de céu na tua cabeceira para que, durante o dia, quando as lágrimas te correrem pelo rosto, o possas ouvir e, enfim, refugiares-te nele.
Hoje, não andarei por aí, porque continuarei aí, contigo, olhando-te daquele cantinho...

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Pequenino, olhando por ti...

Sentado num canto escuro do teu quarto, ouço-te chorar. Entre os soluços a que não podes fugir e os suspiros que alguma esperança ainda deixa escapar, permaneço escondido, pequenino, nesse canto sombrio. Tinha vontade de te pôr a mão no ombro, de te abraçar e, entre olhares cúmplices, te enxugar as lágrimas. Tinha vontade de te dar a mão e te mostrar outros mundos que sei, irias gostar. Mas deixo-me estar, pequenino, nesse cantinho, esperando que adormeças de cansaço. Quando as forças te vencerem, levantar-me-ei e chegar-me-ei ao pé de ti.
Enquanto choras deitado, permaneço, pequenino, velando por ti. Agora que dormes, escuto em silêncio a dor que te consome. Aconchego-te os cobertores e dou-te um beijo muito suave para não te acordar e, baixinho, digo para mim: "Dorme! Dorme tranquilo que eu fico de vigia…

Que mais poderei dizer?

Sinto às vezes o cansaço da tal solidária solidão que, ainda um dia destes, partilhei contigo. Acuso no olhar profundo a espera paciente de quem sabe (quero ainda acreditar) que virás um dia. Por enquanto, vou-me dando aos lirismos da alma e voando contigo nos espaços que habitas.
Que mais poderei eu dizer? Que entre a dúvida de amar e o medo de sofrer continuo a preferir a primeira, mas pareço irremediavelmente condenado à segunda. Entre uma e outra, recordo as palavras que um dia ouvi ao amigo Pessoa, “o amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada”.
Talvez tu também o sintas embora, tenho que reconhecer, não na mesma direcção. Ainda assim, porque as horas de convívio começam já a perder-se no tempo e a intimidade da partilha vai permitindo estas ousadias, deixo-te aqui o que me disse em tempos o amigo Pessoa.

O amor pede identidade com diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que se torna seu e não é. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia - os amores todos que são os absurdiandos do amor.
(...) O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente? O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada.
(in 'O Rio da Posse')

Que mais poderei eu dizer? Que sinto tudo de mais…

sábado, 2 de fevereiro de 2008

Meu cárcere voluntário

Circulo nos meandros dos dias banais entre a bonomia de um passeio por ruas de estranhos e o cheiro de sempre da chávena de café. Entre o vício do consumo de algumas páginas e de outra chávena, franzo o sobrolho, numa postura quase comovente de quem procura pensar na sua própria reflexão. E neste esforço hercúleo de me ultrapassar, refugio-me naquele pedaço de pedra, naquela varandinha minúscula que, sobre a rua, me prende e me protege. Ali, escondido algures entre o frio da noite e o calor do café, escuto o ruído surdo do horizonte negro e, enfim, entrego-me novamente às divagações caseiras que por momentos abandonei.
De quando em quando, ouço, lá em baixo, os risos sonoros da malta, deslocando-se para os bares do fim da rua. Lá em cima, nem a minha sombra é notado e permaneço como romeiro, sendo “Ninguém!”. Novamente se esfumam os pensamentos e, no seu lugar, receios sentidos de que naqueles risos de alegre bem-estar esteja a crítica mordaz dos meus fantasmas.
À altura do meu pedaço de pedra sobre a rua, meu cárcere voluntário nas noites banais, permaneço invisível. Dali, daquele alto de mundo, regressado uma outra vez às meditações profanas da alma, espreito esses universos fantásticos onde espero viver e desço, por momentos, àquela rua, àquela urbe de sentido único onde posso seguir caminho. Olho agora para aquela pedra angular, meu cárcere voluntário, e vejo-me lá em cima espreitando timidamente o mundo. Deixo escapar um sorriso cúmplice e, timidamente, convido-me para descer. Acompanhado por mim, percorro a minha rua estreitinha, silenciosa, onde até Deus tem uma casinha pequena. Não rezo porque já não são horas de visitar ninguém. Já bastou a ousadia de me convidar para descer!
Continuo a caminhar e sento-me um pouco naquele pequeno telheiro da casinha de Deus. E, sem me aperceber, estou mais uma vez perdido dentro de mim, e ignoro até que a malta de há pouco vem agora em sentido inverso. Devagar, levanto-me e regresso à soleira da minha porta. Naquele pedaço de pedra caindo sobre a rua, despeço-me de mim e, num simples piscar de olho, me asseguro que nos veremos por aí…

Onde nos vemos mesmo?

"Caminante, son tus huellas
el camino, y nada más;
caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante, no hay camino,
sino estelas en la mar."


(António Machado)

Um minuto de silêncio

Um minuto de silêncio por mim que vou morrendo aos poucos, consumindo-me lentamente nas noites longas que suporto. Um minuto de silêncio por mim que vou morrendo aos poucos, perdido no mar imenso em que me afogo. Um minuto de silêncio por mim que vou morrendo aos poucos, esquecido no tempo que já não conto, sumido num espaço que já não sinto, sombra da sombra que nunca sonhei ser.

Um minuto de silêncio por nós que morremos sem nunca ter nascido. Sonhos que nunca sonhei, vidas que nunca vivi, partilhas que não fiz, tempos que ignorei, momentos que nunca aconteceram, que não se eternizarão. Sem ter nascido um dia, morremos os dois. Abraços que nunca troquei, sorrisos que nunca retribuí, olhares que nunca cruzei.

Mas morrendo continuo errante, crente na esperança perdida. E, se não nos restar mais nada, observemos silêncio...


[Se algum dia vivi, perdoem-me o atrevimento.]