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sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Apenas lembrança

Largos anos se passaram já desde aquela manhã de final de Fevereiro. Recordo-a como se fosse hoje. Talvez seja a mais recorrente lembrança que me persegue. Naquela manhã de nevoeiro, sentado solitariamente em frente ao mar, abri a capa amarela daquele livro do Vergílio. Li algumas páginas e senti-me estranhamente próximo. Ah! Como me lembro…
Senti a liberdade que em raros momentos nos é permitida e pude, como em poucos momentos da minha sobrevivência, olhar o mundo com olhos de Merlin. Sim, com esses olhos fundos, complacentes e sábios de quem não está comprometido com nada. Como se naquele momento abarcasse toda a sabedoria do mundo. Como se tivesse apreendido finalmente a essência da vida. Entre o nevoeiro e o céu cinzento, ouvindo o mar tão próximo, cheirando a maresia, lendo absorto aquelas primeiras páginas chorosas de “A Aparição”, senti-me sem espaço e sem tempo. Senti-me eterno, perene. Senti-me apenas espírito. Pouco gente passava na rua, pelo frio da manhã. Desconfio que mesmo quem passou não tenha sequer reparado no banco verde, de onde olhava o mar, esquecido. Ah! Como me lembro…
Li com tanto cuidado aquelas primeiras linhas. Já não me recordo de uma única palavra, mas nunca esquecerei o que senti. Falavam para mim sobre o momento que na altura me pareceu tão dicífil, tão solitário. Confesso agora que me senti confortável no abandono a que me tinha devotado, naquele retiro forçado a que me tinha dedicado e que permaneceu alguns meses mais. Lembro-me perfeitamente de ter eternizado aquele instante na dedicatória no livro. Foi a minha primeira dissertação literária. Uma tentativa falhada que me condenou, in posterum, para o mundo dos quase-escritores. Pouco importa.
Nunca mais regressei àquele topo de mundo. Pouco me lembro de “A Aparição” e considerei mesmo que o livro me tinha sido mais ou menos indiferente. Hoje penso o mesmo. Apesar disso, a lembrança daquela estranha emoção ficou. E encontro sempre nesse livro de capas amarelas, que nunca mais voltei a ler, nem voltarei, a serena tranquilidade daqueles que, ainda que por breves instantes, viram para lá de si.
Como queria mais do que a lembrança daquele momento! Mas como apenas isso me é permitido, comecei a ler um outro Vergílio em “Manhã Submersa”. A mesma cadência, a mesma escrita nostálgica de prosa quase poética. Agradável lembrança, mas apenas isso. E hoje, coincidência, final de Fevereiro, manhã cinzenta como há anos…

[Bem sei que não consegui passar-vos a beleza do momento. Bem gostaria. Perdoem-me…]

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