Vemo-nos por aí...

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Um outro sorriso

Mais um dia longo, como têm sido quase todos os últimos aliás. Entre outras coisas, o trabalho tem essa capacidade de fazer esquecer o mundo, cria-nos uma possibilidade de refúgio e recolhimento, de adormecimento, quase letargia de sentimentos. A estes, regressamos quase sempre ao final do dia, quando as forças ainda o permitem e não há, como muitas vezes, longos serões de trabalho.
Seja como for, parecem ter regressado os dias da banal tranquilidade. Se a alegria de outras euforias se foi, foram-se também os opostos negativos que a acompanham, aqueles que fazem, mesmo após alguma resistência, correr uma ou outra lágrima.
Nesta nova banal tranquilidade, de brisa outonal e cheiro a castanhas e vinho novo, passeio já o casaco e o cachecol por entre as ruas estreitas e húmidas que tão bem me conhecem. Nas pedras cúmplices sinto-me muitas vezes regressar a um outro tempo, do qual ainda guardo muitas memórias e o sorriso, ainda que com sentido renovado.


Que saudades
de ser menino,
pequenino,
e dormir calminho
aquele sono mansinho
do vitinho.

Que saudades
das bolinhas de sabão
que eu fazia nascer
e que via crescer
para logo morrer
na minha mão.

Que saudades
das tontices do palhaço
que depois de muito amasso
acabava a marcar passo
ao som daquele compasso
de um serrote de aço.

Que saudades
das histórias de encantar
que à noitinha ao deitar
num ritmo de embalar
ouvia a avó contar
até a luz se apagar.

Que saudades desses dias
em que o mundo acabava
com a última badalada,
para só tornar a nascer
com o novo amanhecer
e com novas fantasias.

Agora que o mundo girou
já não se acaba a jornada
com a última badalada,
porque no tempo que passou
foi-se o sono de menino
foi-se o sossego do ninho...

Agora são diferentes
as batidas do coração,
já não há palhaços inocentes
nem bolinhas de sabão.
Apenas histórias de encantar
que não são de embalar.

O sorriso proibido,
tem agora outro sentido,
e rasga-se, ao ver,
essa coisa tão bonita
de ler a palavra não dita,
no fundo dos teus olhos...

domingo, 26 de outubro de 2008

Degelo

O mundo ainda dorme. Talvez sejam horas de mesmo eu ainda estar a dormir. Não estou. 
Saboreio o conforto do contraste entre uma chávena de leite quente e o frio da manhã. 
Deixo-me estar tranquilo a ouvir o tal ruído de fundo da humanidade. Procuro no calor ainda tímido do sol um outro quente que me escapa, como se também assim outro degelo se iniciasse.
Mesmo assim, sozinho nesta manhã soalheira, enquanto espero o degelo, deixo escapar o sorriso fácil que lanço a tudo. Quando chegar o calor de uma outra época de estio, olharei mais para lado e sorrirei, para ti.


sábado, 25 de outubro de 2008

Ainda a mesma arte

Ainda a mesma arte. Talvez sempre a mesma arte. Ou talvez nem seja uma arte, não deva sequer ser uma arte. Pouco importa. Arte ou não, merece a mesma devoção que sempre lhe quero emprestar. Muitas vezes atirado ao alto, outras tantas caído ao chão, sempre renovo a esperança, de te encontrar nesta dança, do amor.

Para ti que te confundes com mundo,
num mergulho de amor profundo.
Levanta-te e firma teus passos
no caminho onde encontras a escassos
a eternidade que tentas tocar
nesse corpo que queres abraçar.
Ressuscita, devagar,
desse outro mundo de mortos,
para amar.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Outra arte

Dilúvio. Sim, foi um dilúvio aquela enxurrada de sentimentos que com a chuvada deixei correr. Talvez por isso a ausência destes tempos e tanto o silêncio que se faz sentir. Apesar de tudo, lembro-me constantemente de ti, leitor atento e sem rosto que, a espaços, me procuras. Esquecido, deixei-me diluir nas águas do dilúvio dessa Barcelona alagada.
Era noite e sentia calor, não sei se pela temperatura, se pela estranha sensação de liberdade que me invadia. Sem mais nem aviso prévio, uma tromba de água arrasa a cidade. Todos se escondem e abrigam, como se temessem seguir com as águas. Deixei-me ficar com aquela liberdade e percorri à chuva as ruas vazias de gente. Como uma miúdo traquina passei por cima das poças, corri pelas ruas fora, ri alto. Sentia essa espontânea alegria que só raramente se experimenta. Essa alegria das almas simples, das que encontram num sorriso todo o conforto do mundo. Sorriso só o meu, mas pude imaginar outros, outro.
Esbarrei, depois de andar à deriva sem saber muito bem por onde, com esse porto sagrado de Santa Maria del Mar. Tive vontade de entrar e escutar, na escuridão daquelas paredes, esse tal sorriso que apenas imagino.
Regressei no dia seguinte. Daquele dilúvio, onde me senti menino, apenas restava a alma lavada e a tranquilidade das horas de bonança. Entrei, sentei-me. Por momentos julguei estar no ponto mais fixo do universo, a partir do qual tudo gira. Não resisti e, no aconchego das luzes das velas, do calor do espaço e da música de fundo, escrevi um outro quase-poema, para ti, de quem apenas imagino o sorriso.

Como te queria abraçar.
Voar para o nada que descubro
Ser tudo o que sempre procuro
E onde esperando estarás
E olhando me verás
Dizer o sim que não falo
Palavra que pelo olhar não calo.
Deixarei então o mundo de parte
E construirei contigo essa arte
De amar...


sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Sorriso(s)

Finda mais um dia. Já poucos habitam este espaço de trabalho. Tenho a impressão que estou só, de que todos se foram já. Da janela vejo a morte dos últimos raios de luz sobre o campo relvado que se estende ao meu lado. Uma guitarra enche o ambiente e, não fosse o agradável cansaço de uma semana de trabalho, sentir-me-ia levitar.
Sinto o ruído de fundo da humanidade, esse de que tantas vezes fugi, mas de que sempre quis fazer parte. Olho novamente a janela depois de mais umas leituras na imensidão de papéis que cresce todos os dias na secretaria, como se fossem um rio que eternamente caminha para a foz sem que se possa dizer que finalmente desaguou.
Paro, recosto-me na cadeira e deixo o olhar perder-se na paisagem agora escura. Neste ambiente de bucólico bem estar, tenho vontade de jogar tudo para o alto e arriscar. Tudo parece afinal tão possível, tão simples como o sorriso fácil que te vi lançar vezes sem conta naquele bocadinho de tempo.
Deixo-me estar, deixem-me estar assim, neste final de dia, a olhar pela janela, recostado na cadeira, com um sorriso nos lábios, a ouvir o ruído do mundo e a imaginar esse outro sorriso...


sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Xiu..

No silêncio desta noite escura, sob o estrelado céu deste Portugal profundo em que me refugiei estes dias, ouço as palavras de Torga e, com elas, penso em ti que, mesmo com esforço, continuas sem rosto.Talvez seja da escuridão, espero. Ainda assim, sorrio, porque não?


No silêncio da noite é que eu te falo
Como através dum ralo
De confissão.
Auscultadores impessoais e atentos,
Os teus ouvidos são
Ermos abertos para os meus tormentos.

Sem saber o teu nome e sem te ver
- Juiz que ninguém pode corromper -,
Murmoro-te os meus versos, os pecados,
Penitente e seguro
De que serás um búzio do futuro,
Se os poemas me forem perdoados.


(Torga, A um secreto leitor, 1951)

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Formigar

Procuramos momentos de transcendente leveza, do forte bater do coração, essa explosão atómica dos sentidos, de excitação à flor da pele, de arrepios de felicidade. Procuramos sempre esse arrebatamento profundo de amor, onde se concentra toda a energia do universo, como se tudo o mais deixasse por momentos de existir. Arriscaríamos praticamente tudo por um desses segundos de magia onde, de um beijo, nasce o tal bosão de Higgs, essa "Partícula de Deus" que uns e outros insistem em procurar no lugar errado. Sim, é isto que procuramos ou, pelo menos, é com isto que sonhamos. Talvez por isso mesmo sintamos todos os outros momentos, a maioria deles aliás, em que os fotões se perdem no espaço vazio, como estrelas cadentes que morrem pouco depois de nascer, sem nada que as eternize, que não a nossa memoria daquele risquinho no céu.
O que todos esquecemos muitas vezes é que o amor é muito, muito mais do que esta aparente transformação de energia. É sobretudo formigar. Essa labuta constante na linha contínua do tempo. Essa teia de carreiros que se cruzam e descruzam a toda a hora, onde altos e baixos, fotões em fuga ou bosões de Higgs, acontecem a cada instante.
É formigar pois. É reconstruir com paciência o que o dilúvio arrasou sem piedade, mas é também caminhar, abraçado, com os pés descalços na areia. Sigo caminho, tentando sentir sem pensar, porque, como dizia Caeiro, “há metafísica suficiente em não pensar em nada”. Fico-me por esta, enquanto formigo.