Vemo-nos por aí...

segunda-feira, 31 de março de 2008

Relatividade

Tudo é relativo! Citam comummente os incautos, justificando o que não tem justificação. Procuram nas palavras que não disseste a explicação dos actos impensados, das posições pessoais indefensáveis, dos comportamentos errados. Fazem-nos crer que na verdade tudo é possível, que tudo faz sentido. Como se Protágoras renascesse e o homem voltasse a ser a medida de todas as coisas. Não, não o é, nem nunca foi esse o teu entendimento, físico humanista. Bem sabias que a relatividade tem sentido e direcção. Que o é por referência e não por preferência. Que o tempo é relativo em relação a um observador. Dois referenciais, não um...
Olhando o mundo por trás de um sorriso matreiro, mostraste-nos como tudo se deveria tornar mais simples, mas não simplificado. Que o homem é-o também por referência a outro homem e que essa referência se materializa na relação que se estabelece. Não descobriste o elixir da longa vida, porque esse foi já provado ao longo dos anos por todos os que perceberam o milagre, mas deste o testemunho que poucos estamos capazes de dar:

Pode ser que um dia deixemos de nos falar...
Mas, enquanto houver amizade,
Faremos as pazes de novo.

Pode ser que um dia o tempo passe...
Mas, se a amizade permanecer,
Um de outro se há-de lembrar.

Pode ser que um dia nos afastemos...
Mas, se formos amigos de verdade,
A amizade nos reaproximará.

Pode ser que um dia não mais existamos...
Mas, se ainda sobrar amizade,
Nasceremos de novo, um para o outro.

Pode ser que um dia tudo acabe...
Mas, com a amizade construiremos tudo novamente,
Cada vez de forma diferente.
Sendo único e inesquecível cada momento
Que juntos viveremos e nos lembraremos para sempre.

Há duas formas para viver a sua vida:
Uma é acreditar que não existe milagre.
A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre.

[Albert Einstein]

sábado, 29 de março de 2008

Escape no escape...


Um escape no escape. Aproveito-o para te escrever leitor atento, não porque sintas a minha falta, mas pelo egoísmo de quem não se quer saber esquecido. Na correria louca dos dias, entre um divino sol primaveril e os pequenos passeios nocturnos que, mesmo longe, não deixo de dar, recordei um poema esquecido. A tocante sentença que me humaniza momentaneamente e me faz crer com todas as forças que o mundo não pára de girar. Aguardarei essa aurora do dia, alba esperança das noites de luar. Por ora, fico acordado para não a deixar escapar, fruindo o tempo que ainda me resta antes de, amanhã, regressar ao meu cárcere voluntário das horas banais e aos segredos que lá deixei…

If you can keep your head when all about you
Are losing theirs and blaming it on you,
If you can trust yourself when all men doubt you
But make allowance for their doubting too,
If you can wait and not be tired by waiting,
Or being lied about, don't deal in lies,
Or being hated, don't give way to hating,
And yet don't look too good, nor talk too wise:

If you can dream--and not make dreams your master,
If you can think--and not make thoughts your aim;
If you can meet with Triumph and Disaster
And treat those two impostors just the same;
If you can bear to hear the truth you've spoken
Twisted by knaves to make a trap for fools,
Or watch the things you gave your life to, broken,
And stoop and build 'em up with worn-out tools:

If you can make one heap of all your winnings
And risk it all on one turn of pitch-and-toss,
And lose, and start again at your beginnings
And never breath a word about your loss;
If you can force your heart and nerve and sinew
To serve your turn long after they are gone,
And so hold on when there is nothing in you
Except the Will which says to them: "Hold on!"

If you can talk with crowds and keep your virtue,
Or walk with kings--nor lose the common touch,
If neither foes nor loving friends can hurt you;
If all men count with you, but none too much,
If you can fill the unforgiving minute
With sixty seconds' worth of distance run,
Yours is the Earth and everything that's in it,
And--which is more--you'll be a Man, my son!

['If' by Rudyard Kipling, 1910]

quarta-feira, 26 de março de 2008

Escape

Ainda agora chegado, parto para mais uns dias de ausência. Sinto-me muitas vezes romeiro em eternos apeadeiros de beira de estrada. Este sentimento é tão mais forte quando mais ao fundo de mim vou. Ainda que a opção por estas e não outras palavras seja literal, e uma opção nunca é inocente, não posso deixar de derivar para outros campos e outros contextos. Continuo a descer em apeadeiros vazios, ermos despidos de alguém, descampados longínquos de amor. Vou levando o sorriso nesse primeiro contacto, mas cada vez mais sinto o aperto do cansaço e da desilusão. Resisto, crendo que algures, também perdido, andarás tu. Enquanto, vou procurando, embora saiba onde te achar…
Pela ausência dos próximos dias, imaginando que passarás por aqui, leitor atento, ficam, a propósito de um escape, as asas que espero ainda abrir…

Sem título

Chegam ao alto da torre as únicas humanizações aqui possíveis - as dúvidas. Soltam gritos surdos, ecos perpétuos do que se procura mas não se quer esquecer.
A ausência sentida é mais quente do que o vazio. É talvez este o paradoxo mais real, que faz da dor a certeza que dá sentido às lágrimas, essas torrentes que preenchem o nada e que nos aproximam do que há muito se afastou...
Mesmo afastados, permanecemos todos irmanados pelos constrangimentos de uma sociedade que nos faz sombra. Que nos obriga desviar o olhar do olhar, o sorriso do sorriso, que nos impede de dar a mão à mão, de abraçar o abraço, de beijar o beijo.
Virá um dia a cidade da utopia, esse espaço sem muros nem ameias, feita de gente igual por dentro, gente igual por fora. Cidade do Homem...


terça-feira, 25 de março de 2008

Durmo ou não?

(Aos que hibernam.)

Não respondam. Não há resposta, apenas pergunta. Nem todas as perguntas têm resposta! Nem de todos as perguntas se quer uma resposta. Há perguntas que nascem sem resposta e outras que mesmo nascendo respondem-se a si. Não me condenem, ó deuses do linguísmo, por repetir e iterar tantas vezes seguidas pergunta e resposta, como se mais vocábulos não houvesse. Repetidos são os ciclos da alma, onde vamos colocando ad eternum a pergunta sem procurar resposta. Mas, por momentos, quem já não deu a resposta à pergunta que nunca houve? Pergunta, resposta. Pergunta, resposta. Pergunta. Resposta. Qual a melhor? Haverá resposta?

Durmo ou não? Passam juntas em minha alma
Coisas da alma e da vida em confusão,
Nesta mistura atribulada e calma
Em que não sei se durmo ou não.

Sou dois seres e duas consciências
Como dois homens indo braço-dado.
Sonolento revolvo omnisciências,
Turbulentamente estagnado.

Mas, lento, vago, emerjo de meu dois.
Desperto. Enfim: sou um, na realidade.
Espreguiço-me. Estou bem... Porquê depois,
De quê, esta vaga saudade?

[Fernando Pessoa]

Qual era a pergunta afinal?

segunda-feira, 24 de março de 2008

Um lugar ao sol...

De mansinho
sussurrando baixinho,
pé ante pé,
a estação da alegria,
eterna magia
dos que sentem a fé
de uma flor,
que sendo de amor,
cresce devagar,
aurora que irá desabruchar
nos dias brilhantes
dos amantes.

Eterna também é a flor
que por ser de amor
não padece com o tempo.
Nem sofrem com o vento
suas pétalas infindas
sempre bem-vindas,
na estação na alegria,
eterna magia
dos crentes
que vêem já as sementes
a nascer…

E com elas mil cores,
reflexos de tantas flores
onde procuro com alento,
atento,
a minha primavera!
Uma nova era
de olhares partilhados,
em silêncios falados,
nesse lugar,
de luar,
ao sol…

quinta-feira, 20 de março de 2008

Retiro

Algumas linhas depois, entre o primeiro contacto e a distância que vamos mantendo, resolvo fazer uma pausa. Não sei se uma pausa de ti, se de mim ou do mundo. Perder-me-ei estes dias no Portugal profundo, de onde emanam muitas das raízes que me alimentam e onde sempre encontrei, nas assombrosas paisagens do nordeste, um pouco de mim. Muitas vezes deixo a aldeia e o buliço típico dos dias de festa e perco-me pelas montanhas e pelos pequenos paraísos que conheci quando miúdo. Agora crescido, posso sair de casa sozinho e perder-me nesses campos e, entre sobreiros e oliveiras, aconchegar o sobretudo e olhar um horizonte tão extensível quanto estou capaz de ser. Lembro-me sempre nestas vistas deslumbrantes das palavras desassossegadas de Bernardo Soares e acredito, cada vez mais, que sou, de facto, do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura.
Encontrar-te-ei por lá, com toda a certeza. Ver-te-ei numa fraga, numa flor silvestre, no canto de um pássaro, no sol que reflectirá no meu rosto e até nos cristais de cloreto de sódio que poderei, em algum momento de inepta fraqueza, deixar cair.
Literalmente desconectado com o mundo, faço o retiro que a alma clama há muito. Dobrado ao silêncio imensidão, passarei os dias entre as caminhadas tranquilas pelos montes e algumas leituras pessoais que fui descurando nestes tempos. Cumprirei, como me compete, os compromissos familiares que me estão reservados, sorrindo prazenteiramente e distribuindo os cumprimentos verticais que os outros esperam. Mal possa, perder-me-ei novamente nos campos que circundam a aldeia.
Felizmente, felizmente à luar! Pela noite dentro percorrerei as longas horas que me separam da aldeia, parando várias vezes para ver o reflexo fantástico do luar nas encostas de um Douro que vou subindo. A música do carro acompanha-me e, parado, numa estrada sem luz pública, sem movimento, sentir-me-ei confortavelmente eu.

Adeus. Até ao meu regresso.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Quedas

Permite-me hoje, leitor atento, depois da ausência forçada destes dias, que me dirija directamente a um leitor quase desconhecido, e quase não é pormenor. Não que estas palavras soltas não possam ser de todos os que as queiram suas, mas antes porque me sinto devedor de uma reflexão e apenas isso, uma reflexão.

Dizias-me tu, na tua simpática atenção quero supor, que me acautelasse, não fosse cair do alto da minha torre. Sim, da minha torre. Esse espaço de onde vejo o mundo quase todo, de onde toco o meu infinito finito. Esse lugar de sapiência forçada para onde há muito fui desterrado. E desterrado é a mais pura das verdades. Talvez não o tenhas percebido, admito.
Quedas, escreveste tu. Duas falácias rotundas numa palavra tão simples, perdoa-me a impertinência. A primeira delas, não tão explicita como a outra, é a de que eu estarei num alto de superioridade e, repara, escrevo alto de superioridade, optando descaradamente pela redundância. A segunda é de que a queda é uma qualquer coisa negativa. Comuns, mas erradas.
Permanecer quase sábio não pressupõe nenhuma elevação do ser, da mesma forma que abençoar o infinito nada tem de superior. Bem pelo contrário e, por isso, dizia que um dia também eu ousei ser humano, abençoado. Aí sim, te mostraria temerariamente toda a grandeza, a dimensão dos que descobrem o tal segredo. Daqueles que são capazes de tocar o que eu apenas contemplo do alto da minha torre. Esses que esboçam sorrisos correspondidos, que choram a alegria, que suspiram de saudade, que sentem o toque da mão.
Derivamos daqui, tranquilamente, para a segunda falácia. Cair do alto da torre nada mais é do que cair na humanidade que apenas abraço e humanizar-me também. Ser abençoado e palpar o infinito. Ficar encandeado pela luz e acreditar que o mundo afinal é redondo.

Recolho-me à exiguidade dos habitantes das torres e peço-te, como da primeira vez que aqui vieste, a 'simpática benevolência que a imperfeição pressupõe e que a compreensão não dispensa'. E apenas te pergunto, porque achas que Seth, em City of Angels, se quis também humanizar precipitando-se no mundo com aquela queda?

domingo, 16 de março de 2008

Para vós...

Olho novamente o mundo com os olhos cautos, regressado que sou à velha poltrona de quase-sábio, esse trono sagrado do absoluto relativo, da distância cultivada, da benignidade genuína. Esse magistério do milenário de longos cabelos brancos e sabidos conselhos.
Encontro-me de novo nesse ponto alto, nesse tecto do mundo, e tenho em mim toda a humanidade. O vento leva-me a capa e impõe a imagem serenamente austera onde sempre me senti confortavelmente protegido. Com gestos elegantes cumprimento o mundo e abençoo o infinito. Essa realidade quase sempre intangível, mas palpável uma vez descoberto o segredo. O secreto segredo do sorriso perdido, da lágrima caída, do olhar fixo, do beijo demorado, do suspiro largado, do coração alvoroçado. Tudo isso que transforma o cinzento em soalheiro, o exíguo em imensidão, a singela flor na beleza rara, a andorinha na primavera e, vejo-o daqui, a impossível certeza na mais concreta verdade.
Sinto-vos a todos e, na apoteose do meu silêncio, ergo as mãos e amplio Ágaphe, solto Eros e faço ressonância exponencial de todos esses sorrisos que chegam ao cimo da minha torre. Permaneço na sombra, de onde, como se sabe, se vê melhor a luz, olhando por vós…

Ao trono alto do meu mundo
em bailados de encantar
chegam risos de amor profundo
chegam sonhos no ar
e alegrias
e suspiros
e olhares
e saudades,
corolários de amar

Vêm aos pares,
eternas medusas
translúcidas
perdidas noutros mares.

Ordeno a Zéfiro que se levante
na sua força plena
e vos deixe flutuar
Ordeno à musa que cante
a melodia serena
de amar…


Dissolvido no pó da ampulheta, não tenho tempo nem espaço. Genuinamente, sorrio com todos vós, humanos que amais. Também eu um dia o ousei ser. Ab imo pectore.

sábado, 15 de março de 2008

Rio de amar onde navego

Rio de amar onde navego
barco sem rumo
náufrago em terra
marinheiro de sonhos
sem cais nem porto.
Meu destino morto!

Sopra o vento inconstante,
batem-me as vagas, sinto-te a ti,
que perto te vais afastando
do ponto em que te vi.

Não há mares para desaguar
estendem-se os rios,
consome-se o tempo,
desfaz-se a barca na água
e entre vales sombrios
crescem destroços de mim…

Boa noite

Acabou, enfim, mais uma semana. Tomo, cansado, um leite quente. Espreito lá fora a aldeia deserta, adormecida. Tudo repousa. No silêncio da casa apenas os meus suspiros inaudíveis. Sinto o peso do trabalho nos olhos. Preso nas minhas reflexões, recolho-me finalmente e deito-me quase morto na cama. Por cima, sobre a almofada, a minha mágica janela de sótão, escopo só meu por onde espreito universos fantásticos. Como nas noites sossegadas da aldeia, não fecho a cortina e adormeço com o reflexo da lua. Para o sono pacífico das almas tranquilas, apenas me falta o beijo de boa noite que nunca chega…

sexta-feira, 14 de março de 2008

(Des)Encontro

Entre os dias longos de trabalho, numa breve paragem de descanso, em que se ignora a agenda, se esquecem os telefones que tocam, os compromissos que ainda se tem e os papéis acumulados na secretária. Nesse breve instante em que o mundo está já em descanso, em que se ouvem os risos de quem regressa a casa, em que se vai dizendo repetidamente bom fim-de-semana a todos os que saem. Nessa pausa em que levanto os olhos para a janela e me apercebo do pôr do sol, recordo-te. Mesmo que a tua imagem não se afaste, encontro no trabalho, como sempre encontrei aliás, o mais seguro refúgio. Lembro novamente o que vou procurando esquecer, essa tentativa apenas sonhada, esse espectro de sentimento onde apenas eu e só eu li o que não existia. Encontro-me mais uma vez no fim do caminho não trilhado, na senda apagada de uma ilusão. Sorrio estupidamente, tolerante comigo e com um tempo que virá, sem ti…
Consola-me hoje aquele pedaço de memória, já pouco recordado, em que o amigo que já virou estrela me abraçou e, entre lágrimas, me confiou um pouco de si. Ainda hoje o guardo, como às palavras sentidas que me dirigiu. Hoje percebo-o melhor do nunca e talvez apenas só agora me tenha irmanado verdadeiramente com ele. Continua, como há anos, seguindo de perto os meus passos e contrariando a minha crença no mundo plano. Lateja-me na cabeça, como acontece em noites de insónia, a frase daquela despedida eterna, meu irmão, em que ouvi que o amor não tem princípio nem fim, apenas rosto. Como me esforço por acreditar. “Talvez esta canção te não encontre ou diga qualquer coisa se a ouvires, te mostre tudo aquilo que tu pensas e tens medo de gritar, te mostre talvez uma nova maneira de encarar o mundo”.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Tudo são lugares

Procuro palavras impronunciáveis,
verdades axiomáticas, sentidas reflexões.
Procuro causalidades, deduções
e silogismos irrefutáveis.
Procuro filosofias profundas,
teoremas supremos, leis universais.
Procuro prelecções fecundas,
conselhos arrebatadores, exortações mundiais.

Em tudo procuro escondido,
ver nos outros onde estou,
lançar um olhar fugido
por aquilo que não sou.

E vendo o que não quero,
regresso a páginas tantas
às danças de bolero,
e a essas horas mansas,
em que dormindo sereno,
deixo o mundo terreno
e regresso novamente
a esse lugar sem gente
ponto marcado e profundo
em Para-lá-do-mundo…

quarta-feira, 12 de março de 2008

Pura matemática

Disperso-me em espaços de integração, em sonhos trigonométricos, em derivadas de tempo que tendem para mais infinito. Garatujo sucessões algébricas em contínuas iterações, calculando as secantes que nos unem. Apenas descubro tangentes, essas rectas de um ponto único que se perdem no plano. Resolvo funções possíveis, tentativas sempre goradas de descobrir incógnitas conhecidas. Multiplico sonhos não divididos a que vou somando futuros subtraídos. Procuro na intercepção as probabilidades totais, certezas da reunião de todo um espaço amostral em que se diluem os conjuntos.
Termino sempre perdido no universo dos números complexos, nas funções sem limite, nas exponenciais negativas, nos conjuntos vazios. Em que sinal me enganei, de que operação me esqueci, que calculo errei?


segunda-feira, 10 de março de 2008

Debaixo da chuva

Nova semana. Dia cinzento de chuva. Sinto o aconchego que só estes dias me dão. Se não fosse por me saber insignificante, diria que hoje chove para mim. Ouço a água nas caleiras, vejo rios por ruas alagadas e neles, diluídos, gritos de silêncio e vazio. Lava-se a alma, clareia o espírito, secam as lágrimas.
Recordo o quarteto da capicua e uma das suas músicas esquecidas, combinação perfeita de simplicidade e mansidão em mais um dia de banal tranquilidade. Como sabe bem depois da erma exaustão dos últimos dias.
Para sorrir um pouco, só me falta mesmo sair e andar à chuva. Sentir a roupa molhada no corpo e gritar alto o que cala o coração. Sentir a liberdade do desapego e novamente, caminhar sem esperar que, num qualquer momento, me toques no ombro e sorrias para mim. Tropeçarei ainda algumas vezes, mas agora rir-me-ei de mim e para o mundo. Assim espero.

domingo, 9 de março de 2008

Tempus edax rerum

Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e de paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!


(Ary dos Santos, Kyrie)


(Des)fabular

Direito, mantenho o sobrolho carregado. A casa está cheia de convidados. Mantenho conversas de conveniência, respondo a um ou outro sorriso. Adopto a atitude vertical da distância que muitos conhecem. Tratam-me com a deferência que julgam ser adequada, reconhecendo na sobriedade da postura a autoridade inata que não tenho. Mantenho-me discreto e menos conversador do que o habitual. Minto cansaço para evitar respostas que não quero nem tenho que dar. Leio em alguns olhares a vontade de avançar um pouco mais, a necessidade do conforto de alguma proximidade.
Nem que quisesse, hoje não o poderia. Na verdade estou longe, muito longe. Apenas um espectro de mim se vai passeando pela sala. A cada minuto, escapo para o ar puro. Encosto-me ao muro de heras e, enfim, posso despir tanta segurança, tanta aparência. Olho intranquilo a transparência do céu azul. Sinto raios de sol a iluminar-me um rosto sombrio e fechado. Não há sorrisos nem suspiros. Não permito. Procuro o aconchego das paisagens filosofantes, tão pouco minhas. Sinto-me distante de tudo e de todos. Sinto frio e procuro-me lá longe. Percorro espaços comuns onde te sei andar. Silêncio.
Na desesperança do desamor, desabito horizontes sonhados. Desafogo-me de sentimentos onde mergulhei e venho à tona do desapego. A desarmonia do mundo reflecte apenas fragmentos de alma, ladrilhos disformes caindo em derrocada. Sinto as vertigens das desconscientes ilusões que alimentei e passeio-me agora entre destroços familiares, pedaços de um desencanto irreal onde, desnutrido, o coração se torna pequenino. Nada mais peço hoje que descanso…

sexta-feira, 7 de março de 2008

Sonhemos então...

Poderia dize-lo de milhares de formas possíveis. Nunca o diria com o desassossego do livro do amigo Bernardo e seria incapaz de tocar o mais fundo de ti com a mesma suavidade da voz da diva cantora. Se de alguma coisa me posso arrogar, na banalidade e simplicidade da minha imperfeição, é da escolha desta partilha. Sonhemos então...

quinta-feira, 6 de março de 2008

Sentidos...

Suspiro,
profundo,
cativo de ti.

Olho,
perdido,
procuro-te a ti.

Ouço,
suave,
escuto-te a ti.

Cheiro,
no ar,
um perfume de ti.

Toco,
sozinho,
num pouco de ti.

Cinco
sentidos
entregues a ti…

quarta-feira, 5 de março de 2008

.

Um ponto
vejo no ar,
a dançar,
como um conto,
desenhando no espaço vazio
caminhos possíveis!
E em volta,
a alumiar,
duas velinhas sem pavio,
reflexo já moribundo
de um outro mundo
que se não quer apagar
que se não chegou a amar.

Fixo agora esse pontinho
que se agita manso, mansinho,
como se não quisesse acordar
o que morre e nasce devagar:
essa coisa sem sentido
de que há muito ando fugido!

Vai crescendo, o pontinho,
ganhando contornos de recta,
onde se encontra a meta,
princípio do fim de um caminho
em que ponto, sempre pontinho,
cai do ar onde está
em cima do in,
onde ainda não há,
a pintinha que lhe falta,
para que se possa ler em voz alta
o que se quer ouvir
o que se espera sentir…

terça-feira, 4 de março de 2008

Perdido

Onde estou? Em que mar derivo? Em que águas me afogo? Em que porto te perdi? A imensidão à minha volta constrange-me, o silêncio aperta-me, a tranquilidade abafa-me. Sinto apenas a vaga ondulação que me embala e, a uma onda mais forte, levanto a cabeça e espero ver-te ali, de mão estendida para mim, afagando com ternura as lágrimas que me vão cair do rosto. Enquanto, murmuro uma música tua para me manter acordado e não me esquecer de ti. Canto baixinho, muito baixinho, para ter a certeza que te ouço chegar. Talvez seja por isso que não vens, porque não me ouves. Arrisco, conhecendo os limites da minha própria sobrevivência. Se não chegares, logo se verá, se houver ainda tempo…

segunda-feira, 3 de março de 2008

Mão vazia...

Numa corrida à biblioteca, entre as ocupações quotidianas e uma escapadinha para desanuviar, dá-se o encontro fortuito com a improbabilidade.
Já não o via há uns meses, talvez anos. Reconhecemo-nos no imediato. Nunca fomos amigos, mas sempre lhe notei uma reverência de que nunca me achei merecedor. Cumprimentou-me efusivamente. Retribui com a cordialidade que as pessoas sempre me merecem, mas com deferência que a distância justifica.
Falamos um pouco, procurando encontrar assunto nas parcas lembranças comuns que ainda mantemos. Recordamos algumas histórias, perguntamos por um ou outro colega. Às tantas parou. Olhou-me fixamente. Agora recordo como era observador. Perscrutou-me e disse, na sua voz rouca, que eu estava igual. Sorrio, como sempre faço nestas ocasiões, e pergunto-lhe porquê? Disse-me, como se desse um conselho sábio, que eu continuava com aquela mania de andar com um livro e o porta-lápis na mão, como se não soubesse o que fazer com as mãos vazias. Sorrio novamente, sem comentar.
Despedimo-nos. Passamos os contactos que nunca trocaremos, em juras recíprocas de nos voltarmos a encontrar. Ninguém sabe muito bem para quê, se nem no tempo de escola o fazíamos. Enfim, mostramos maturidade e seguimos os guiões sociais prescritos, sabe Deus por quem, para estas ocasiões.
Regresso à minha corrida. Quando paro, enfim, pouso o livro e o porta-lápis na secretária. Recordo a observação e, distraído, consinto um suspiro. Olho para o livro. Passo-lhe os dedos como se o acarinhasse. Deixá-lo-ía com todo o gosto em cima da mesa. Deixa-lo-ía sim, se tivesse alguém a quem dar a mão. Por ora, continuo a passear-te, para não sentir a mão vazia…

domingo, 2 de março de 2008

pequenino

Coração pequenino. Como sinto o coração pequenino. Pequenino, tão pequenino. Tolhido no pobre universo linguístico em que facilmente que perco, nem na escrita encontro o reduto sereno que muitas vezes me dopa. Vagueia o olhar, cruzam-se os braços, cai a cabeça na ombreira da janela, solta-se um suspiro, tão ténue que se confunde com um último sopro de vida. Talvez seja.
Talvez seja o último sopro de vida do que nunca nascendo nem por isso dói ou marca menos. A última esperança num sopro que mais se parece com Bóreas, esse vento agreste e solitário do norte.
Procuro esquecer, crendo que estou errado e que é apenas algum cansaço de desamor que me gela os sentidos. Saio à varanda, estico bem o rosto esperando sentir Zéfiro anunciando a primavera. Como demora a primavera que me libertará finalmente do meu cárcere voluntário para novamente me prender, a ti raio quente de luar.
Demora e vai ficando cada vez mais distante. Percebi-o na força daqueles olhares cruzados em que, discretamente, fui reparando. Permaneci no meu escudo de tranquilidade e indiferença, couraça já velha e experiente de que poucas vezes me desfaço. Que ousadia a minha ter achado alguma vez que podia ser Quixote e lutar contra gigantes. Sim, porque o que se deparava à minha frente, nos sorrisos cúmplices e na intimidade partilhada, era o mais gigante dos sentimentos. Vivo, muito vivo. Ah! Coração pequenino o meu…


Que amor nao me engana
Com a sua brandura
Se da antiga chama
Mal vive a amargura
Duma mancha negra
Duma pedra fria
Que amor nao se entrega
Na noite vazia?
E as vozes embarcam
Num silêncio aflito
Quanto mais se apartam
Mais se ouve o seu grito
Muito à flor das àguas
Noite marinheira

Vem devagarinho
Para a minha beira
Em novas coutadas
Junta de uma hera
Nascem flores vermelhas
Pela Primavera
Assim tu souberas
Irma cotovia
Dizer-me se esperas
Pelo nascer do dia

sábado, 1 de março de 2008

Avança

Quando o céu, depois do nevoeiro, te traz um azul brilhante mas sem rosto. Quando depois de uma esperança cultivada conheces a verdade que não queres ouvir. Quando acreditas ainda que não deves desistir. Quando, por mais que o percebas, prefiras ignorar que a lua já não te passa nenhum segredo. Quando tudo te trespassa na torrente arrasadora do dilúvio que parece não ter fim, escutas, enfim, a força poderosa que te faz sonhar e chorar.
Escutas inebriado aquele chamamento ao mais fundo de ti. Escutas-te apenas a ti e, prostrado, entras num torpor que te protege e onde choras baixinho. Vês a força do momento primeiro agora transformada em escalas descendentes que te parecem conduzir à escuridão sem regresso. Mas, esperando eternamente, ouves novamente aquele grito poderoso e, de um pulo, avanças para um desconhecido que temes e que desejas. Avança, enfim, para o combate final do qual sairás sempre vencedor porque te superaste a ti.